quarta-feira, 5 de dezembro de 2007

O título escolhido

por Ana Paula Almeida

19h. Entrego a minha última matéria pronta ao editor. Naquele dia foram quatro. Entre redação – faculdade – redação, mal havia dado tempo de comer alguma coisa. Meu pensamento era só correr pra casa, comer, descansar. O dia tinha sido estressante, mas normal, em vista de tantos outros. Desde cedo lutava para não chegar atrasada na aula, mas dessa vez também não tinha dado. Perdi a primeira. Sai perto das seis da noite e voltei para a redação.

19h. Entrego minha última matéria pronta ao editor. O telefone toca e é mais uma mulher. No Alto da Guabiraba, na RPA-3, a população espera a chegada do IC e do IML. Uma colega de trabalho avisa ao editor. “Vamos fazer, é uma mulher”. O entusiasmo dele poderia contagiar quem estava próximo, o dia estava “fraco” devido às poucas ocorrências e uma mulher ganha sempre mais destaque. Estava arrumando minhas coisas quando ele toca no meu ombro. Não tenho escolha. Ele não agradece, sorri e me promete uma folga. Três horas depois deveria estar de volta à redação com a matéria pronta.

Chamei o fotógrafo e o motorista. Pelo menos quem nos guiava era um dos meus melhores colegas de trabalho. Fiquei mais calma quando descobri que era o carro dele, mas estava irritada por sair à noite, sendo meu estágio, pela manhã. Sem muita vontade de conversar deitei no banco traseiro quando já estávamos longe da redação. Deitar é imperdoável e dormir é demissão na certa. Mais de quarenta minutos depois chegamos ao local. Carro não entra e deveríamos descer uma escadaria mal construída.

Estávamos, ali, em um beco de uma comunidade pobre. As expressões costumam ser parecidas. O medo, a tensão e a tristeza se misturam num emaranhado de rostos que se esticam para ver o ocorrido. Chegamos. As pessoas já acostumadas evitam me olhar nos olhos. Estão treinadas. Ninguém sabe nada, ninguém viu nada. Espero meu amigo e seguimos descendo pelo beco. Encontramos policiais e questionamos sobre a demora dos técnicos. Quando ligaram para a redação a comunidade já esperava mais de duas horas.

O policial olha pra mim e sorri. Ele já me conhece, e eu, a ele. Geralmente trabalhamos no sábado e a polícia é sempre uma fonte de informação. Enquanto ele se distrai conversando com meu amigo pego a ficha técnica que estava nas mãos dele. Começo a ler. Nome, idade, sexo, filiação, motivo, possíveis suspeitos. Fico atordoada. Ela tinha 16 anos. Pergunto ao PM os campos que estão em branco e são normalmente os mesmos. Ele me diz que ela era “envolvida com o tráfico de drogas”. Estou acostumada a ouvir isso, não me espanta. Minha expressão, porém, denunciava a insatisfação com a resposta.

Continuo descendo. O fotógrafo já estava pegando os melhores ângulos da menina. O IC chega. Começo a conversar com várias pessoas ao meu redor e todas não sabem – ou não querem – dizer o que aconteceu. Ouço uma menina que chorava e questiono se é parente. Ela me abraça, diz que era amiga e num ato desesperador olha meu crachá e se afasta rápido. Me aproximo de outras que estavam consolando ela. “O namorado morreu há um mês”. Desconfio e quero conversar com os pais.

Antes de continuar a busca pela família, devo chegar mais perto. Não consigo, mas devo. Começo a tremer e meu amigo percebe. Abraça-me. “Cheguei ao meu máximo”. Ele vê minha aflição e pede calma e força. Olho para ela. O rosto coberto pelo cabelo e por grande quantidade de sangue. Ele diagnostica. “Um tiro de 12, na cabeça, por trás. A bala saiu na frente”. Olho para ela. Uma menina. Deitada, calma, com os olhos fechados, nariz afilado e boca carnuda. Vestia uma saia jeans, uma camisa colorida e calçava havaianas. O IC remexe atrás de indícios de briga e resistência. Não há.

Um homem magro, de barba quase branca, com um olhar distante e sobrancelhas grossas me aborda. Era o pai. Ainda em choque, me conta que a menina saiu de casa para morar com o namorado, mas voltara depois do assassinato dele. Quero falar com a mãe. Ele me mostra uma senhora de 40 anos, com aparência de 60, que soluça. As lágrimas não rolam mais pelo seu rosto. Ela não quer falar comigo, mas eu insisto. Com os olhos sempre cravados no chão, a mulher me conta que a filha saíra para dar uma volta. Avisou em casa. Com um pouco mais de tempo, ela confessa que no dia seguinte a menina iria depor no processo de investigação da morte do namorado.

Subo a ladeira apressada. Passo pelo policial e questiono sobre o depoimento da mãe. Isso não poderia ser caracterizado como “envolvida com drogas”. Era muito mais do que isso. Sempre é. Ele diz que não sabia, não altera a ficha e avisa de mais um chamado. Era em Olinda. O fotógrafo sorri e diz que nosso expediente terminou. “O de Olinda, só quando a equipe da madrugada chegar”. Nos cumprimentamos e seguimos para o carro. Converso sobre o que descobri com meu amigo que nos guia de volta para a redação. Ele não dá muita importância. Pede para eu escrever isso na matéria. Falo sobre o péssimo trabalho dos policiais. Se já não confiava, agora é total a minha descrença com aquele tipo de investigação.

Chego à redação e escrevo. Consigo colocar tudo que ouvi. Meu editor lê e reclama. “Está muito emotivo”. Reescrevo e com a linha lide, sublide e texto imparcial ele agradece. Escrevi o ocorrido, o depoimento da mãe e da amiga, mas a afirmação do policial ganha destaque. “Morre uma integrante do tráfico”. É a última linha que leio da minha matéria editada: o título escolhido pelo meu chefe.

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